José Galizia Tundisi concede entrevista a revista Época sobre crise hídrica
Em 2007, o consultor e Acadêmico José Galizia Tundisi foi chamado para uma missão desafiadora: encontrar soluções para enfrentar a maior seca do século na Espanha. Ao restringir o número de litros de água por família e aplicar multas aos que extrapolavam o limite, o país europeu atravessou a estiagem sem grandes traumas. Professor da Universidade Feevale, membro da Academia Brasileira de Ciências e presidente do Instituto Internacional de Ecologia, Tundisi já ajudou 40 países a gerenciar seus recursos. Agora, é a vez do Brasil. Em dezembro passado, com outros 14 cientistas, Tundisi lançou uma carta aberta ao governo com sugestões de medidas emergenciais para contornar a crise. Ele avalia que, se não chover o necessário, o sistema Cantareira entrará em colapso em março deste ano. “Sem água, a população pode ir às ruas em manifestações mais violentas do que as de 2013”, diz. “Corremos o risco de perder o controle”.
ÉPOCA – Como um país com um dos maiores reservatórios de água do mundo chegou a este ponto?
José Tundisi – Sempre tivemos a cultura da abundância. Como o Brasil tem 12% das reservas de água do planeta, gastamos muito. Além disso, há uma crise em curso. A quantidade de chuvas diminuiu mesmo. Agora é necessário reformular tudo: diminuir muito a demanda, melhorar a governança, investir em programas de saneamento e de reuso, um dos grandes problemas do Brasil.
ÉPOCA – Há pelo menos quatro anos, o volume de chuvas nos reservatórios do Sudeste vem caindo. Havia dados científicos suficientes para prever a crise?
Tundisi – Sim, havia. Faltou um acompanhamento mais próximo das previsões do IPCC (o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que fornece dados científicos sobre o tema). Em 2001, já sabíamos da seca no Sudeste. Mas isso não foi levado em conta. Os executivos ficaram tão focados em oferecer água de qualidade que prejudicaram o planejamento. São Paulo tem iniciativas boas, mas precisava de um planejamento poderoso e de longo prazo para a gestão dos recursos hídricos.
ÉPOCA – O governo de São Paulo demorou a admitir a crise?
Tundisi – Faltou enfatizar a gravidade dela. A transparência deveria ter sido total. O governo precisava ter dito que não temos só uma crise de abastecimento, mas de múltiplas dimensões: problemas econômicos, sociais, de saúde pública, de transporte… Sabe quantos empregos se perderam com o fechamento da hidrovia do Tietê? Cinco mil. Agora temos 10 mil caminhões usados para transportar o que era levado pelo rio. Sem contar a crise da energia, a agricultura. Essa questão toda deveria ter ficado clara para mobilizar a população.
ÉPOCA – Os interesses eleitorais se sobrepuseram aos da população?
Tundisi – Acho que não. Na minha opinião, tanto o governo federal quanto os estaduais não perceberam a gravidade da crise. Trataram o sistema mais burocraticamente. Faltou uma visão sistêmica, assim como planejamento de longo prazo.
ÉPOCA – Se em março não houver mais água na Cantareira, conforme suas previsões, vamos precisar de um plano de contingência. De quem seria a responsabilidade disso? E como seria esse plano?
Tundisi – A responsabilidade seria não só do governo do Estado, mas também do federal e do municipal. O plano teria de reduzir ainda mais a demanda, por meio de mecanismos legais e educacionais, e envolveria racionamento. Não vai ter jeito. Teremos de restringir uma quantidade de litros por família, como ocorreu em Barcelona.
ÉPOCA – Como se controla isso? Em tese, a água chegará por caminhões pipa, não mais pelas torneiras…
Tundisi – É preciso avaliar como será esta logística. Talvez a gente precise distribuir senhas. Se a gente chegar a este ponto, poderemos ter uma convulsão social. Algo próximo às manifestações de 2013. Mas mais intenso e violento. Durante uma reunião da Academia Brasileira de Ciências, mandamos uma mensagem forte para o governador de São Paulo. Alertei também o Benedito Braga (o novo secretário de Recursos Hídricos de São Paulo). Ele me disse inclusive que o governo está preocupado. Se houver uma situação de redução drástica de água, pode acontecer algo parecido com o que ocorreu em Itu. A população colocou fogo na Câmara de Vereadores. Começou a assaltar os caminhões pipas para tirar água antes que eles chegassem ao seu destino. Por isso, as medidas precisam ser duras, mas sempre negociadas com a população.
ÉPOCA – A reação da população pode ser ainda pior do que em 2013?
Tundisi – Não tenha dúvida. Deixa uma pessoa sem água por uma semana em São Paulo. Com este calor. Com a complexidade desta metrópole. Depois de trabalhar o dia inteiro, enfrentar trânsito, correr para dar conta dos compromissos. Ai você chega em casa e não tem água para tomar banho, dar descarga. Talvez essas manifestações sejam generalizadas, não mais localizadas. Uma cidade inteira se movimentando. Podemos ter uma reação em cadeia, sobre a qual não teremos controle.
ÉPOCA – Já é possível dimensionar o impacto econômico da crise?
Tundisi – Estou começando um estudo para entender a real dimensão da crise. Quando trabalhei na crise hídrica da Espanha, em 2007, consegui ter uma ideia disso. Qual foi a solução emergencial? Primeiro, reduzir a demanda. Cada família tinha direito a cem litros de água por dia. Segundo, importar água. Diariamente, chegavam quatro navios-tanques da França com 250 mil metros cúbicos de água cada, durante seis meses. Terceiro, usar água do mar. Uma planta de dessalinização foi montada às pressas para abastecer Barcelona. Funcionou, mas os prejuízos foram enormes, da ordem de 1 bilhão de euros.
ÉPOCA – Quais devem ser os próximos passos adotados aqui?
Tundisi – Precisamos começar pela transparência total e brutal. É preciso admitir que a situação é muito grave. Em seguida, temos de reduzir a demanda, investir em campanhas de conscientização, multas. Por fim, temos de adotar ações emergenciais. A mais imediata é recuperar a Represa Billings. Como ela tem muitos braços, você pode seccionar alguns deles e tratar por etapas. A obra seria rápida. Algo em torno de quatro meses. Tendo recurso, faz rapidamente.
ÉPOCA – A dessalinização da água do mar seria um caminho?
Tundisi – Sem dúvida. É um dos mais importantes. Só precisa pensar que é caro fazer isso. O problema é: quanto vai custar o bombeamento para o planalto? Precisa de muita energia para levar a água de Santos para São Paulo e para o interior. Uma possível saída seria usar a água dessalinizada nas cidades costeiras e a água da Serra no planalto. Seria mais barato.
ÉPOCA – Importar água, como aconteceu na Espanha, seria uma solução para o Brasil?
Tundisi – Nós temos uma belíssima fonte de água, o Amazonas. O rio despeja 225 mil metros cúbicos por segundo de água no Oceano Atlântico. Mas quanto tempo levaria? De novo: tem de bombear para o planalto. Seria uma solução para as áreas costeiras.
ÉPOCA – Em alguns países, a água do vaso sanitário é tratada e usada de novo para o consumo. Por que o Brasil não faz isso?
Tundisi – Isso é absolutamente possível, os sistemas de tratamento hoje são muito avançados. Trabalho na Jordânia. Ali chove 50 milímetros por ano. Cada gota é reciclada. Em Israel, acontece o mesmo. A média de chuva no Brasil é de 1.800 milímetros por ano numa condição normal. Por isso desperdiçamos.
ÉPOCA – Estamos sobre o maior aquífero do mundo, o Guarani. Qual seria o custo de utiliza-lo?
Tundisi – O aquífero Guarani não é contínuo. Ele é composto de bolsões. É um recurso importante e já usado por muitas cidades. Mas precisamos tomar cuidado com o excesso de uso. Água subterrânea é reserva, não é para usar sempre. E precisa de fiscalização. Sei de um condomínio que rega seu campo de golfe com água do aquífero. É um absurdo. O condomínio liga seu esgoto no sistema da rede pública e aquela água vai embora. Por que não fazer uma estação própria de tratamento de esgoto e pegar essa água menos nobre para irrigar o campo? Eles estão irrigando o campo de golfe com ouro.
(Fonte: Revista Época)